quarta-feira, 29 de julho de 2015

As cangaceiras da República Brasileira.



As cangaceiras.  No rastro de Maria Bonita, dezenas de mulheres mudaram de vida ao integrar os famosos bandos do sertão  Ana Paula Saraiva de Freitas   1/6/2015   
          Criminosas. Quando se fala da participação das mulheres no cangaço, geralmente elas são reduzidas a esta palavra. Uma imagem que perde de vista os medos, os desejos e as frustrações que rondaram as cangaceiras nas décadas de 1930 e 1940, e que ignora as razões que as levaram para essa vida. Enquanto algumas ingressaram nos bandos voluntariamente, outras foram coagidas e privadas do convívio com seus familiares.
           Embora os motivos fossem variados, a maioria daquelas que aderiram ao cangaço carregava a ilusão de que viveria em festa e teria liberdade, sensação alimentada pela vida nômade e errante daqueles homens. A realidade revelou um cotidiano bem mais complicado: além dos embates violentos contra forças policiais, muitas vezes os cangaceiros ficavam mal alimentados, sem água nem lugar para repousar, caminhando quilômetros sob sol e chuva. 
       A faixa etária das cangaceiras variava de 14 a 26 anos, e suas origens socioeconômicas eram diversas, incluindo mulheres de famílias abastadas. Elas viam no cangaço uma oportunidade para romper com os padrões sociais: naquele grupo poderiam conquistar outros espaços além da esfera privada do lar e tinham a oportunidade de escolher seus parceiros sem a interferência dos acordos familiares. 
 Uma vez integradas aos bandos, as jovens tinham que se adaptar à nova vida, sem chance para arrependimento: tentar fugir implicava retaliações tanto por parte de cangaceiros quanto por parte das volantes, como eram chamados os grupos de policiais que perseguiam os “bandidos do sertão”. Nesse espaço permeado pela violência, eram submetidas aos desejos sexuais de seu raptor, sem contato com a família, sentenciadas à morte em caso de adultério e envolvidas nos confrontos com forças policiais. Capturadas pelas volantes, apanhavam, eram estupradas e sofriam diversas humilhações. 
          No cangaço os papéis sociais eram bem definidos: ao homem cabia zelar pela segurança e o sustento dos bandos. À mulher, ser esposa e companheira. Durante a gestação, muitas ficavam escondidas. Depois do nascimento do bebê, eram obrigadas a retornar ao cangaço e entregar a criança a amigos. 
            A convivência entre elas não era totalmente pacífica. Testemunhos dão conta de que uma queria ser melhor do que a outra. O status da cangaceira era medido pelos bens que possuía: joias, vestidos, animais. As qualidades bélicas também estabeleciam diferenças entre elas. Sérgia Ribeiro da Silva, conhecida como Dadá, tornou-se emblemática por sua coragem e desempenho com armas nos embates com as volantes. Chegou a assumir o comando do grupo no momento em que o líder Corisco se encontrava ferido. Mas o prestígio feminino acabava sempre associado ao lugar ocupado pelo companheiro na hierarquia dos grupos.
            Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira), famosa companheira de Lampião, foi a primeira figura feminina a ingressar no cangaço, em meados de 1930. A partir daí, mais de 30 mulheres participaram da vida nos bandos. A Bahia foi o estado que forneceu maior número de moças ao banditismo do sertão nordestino, seguida por Sergipe, Alagoas e Pernambuco. 
             As andanças dos cangaceiros repercutiam na imprensa, e a presença feminina era mencionada de forma genérica e depreciativa. Nos jornais O Estado de São Paulo e Correio de Manhã, aquelas mulheres eram chamadas de bandoleiras, megeras e amantes. Eram estereotipadas como masculinizadas, belicosas e criminosas, além de serem tratadas como objetos de satisfação sexual. 
             A imagem apresentada pelos jornais, porém, difere daquelas que o fotógrafo sírio-libanês Benjamin Abrahão Boto produziu na década de 1930. Suas fotografias mostram como as cangaceiras pretendiam ser lembradas: realçam sua feminilidade, evidenciam cuidados com o corpo, a aparência e a postura, destacam a beleza dos trajes e o apreço por joias. Algumas se faziam retratar com jornais e revistas da época, sinalizando o desejo de serem identificadas como mulheres letradas. Essas preocupações ficam explícitas nas fotos em que algumas – como Maria Bonita – reproduziram a postura e o gestual das mulheres da elite rural e urbana, como se estivessem posando em estúdios consagrados. 
              A maioria dos folhetos de cordel reforça esse aspecto da participação feminina no cangaço. Os versos destacam a preocupação das cangaceiras com a beleza, o amor e a cumplicidade dedicados às relações afetivas, além da coragem nos embates. Nesse tipo de literatura o perfil feminino é recriado a partir de uma perspectiva mítica, envolvendo um misto de heroína e de bandida. 
                As práticas e as representações das mulheres naquele universo da caatinga foram variadas, e elas não tinham um perfil único. Quando o cangaço chegou ao fim, cada uma teve de reconstruir sua vida conforme os parâmetros sociais vigentes. Do cotidiano duro e arriscado das andanças pelo sertão, as ex-cangaceiras largaram as armas e a fama de criminosas para encarar outros papéis: mães, donas de casa e, em alguns casos, trabalhadoras fora do âmbito doméstico.   Ana Paula Saraiva de Freitas é historiadora e autora da dissertação “A presença feminina no cangaço: práticas e representações (1930-1940)”, (Unesp, 2005).
Saiba mais:
ARAÚJO, Antonio A. C. de. Lampião, as Mulheres e o Cangaço. São Paulo: Traço, 1985. 
BARROS, Luitgarde O. C. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Faperj/Mauad, 2000.
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. História do Cangaço. 2. ed. São Paulo: Global, 1986.
MELLO, Frederico P. de. Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.